(Texto de Helder Dias publicado no livro Cuidados Intensivos, com coordenação de Joclécio Azevedo e editado pela Circular Associação Cultural, em 2013)
“A experimentação, que afectou decisivamente a experiência artística e desarticulou a mimesis, não é, pois, de modo algum um acidente estético ou uma mera irreverência vanguardista. Enquanto modo de apropriação da experiência ela afectou igualmente a ciência e a política e também elas se tentaram a dispor da vida mais do que a explicar o mundo ou cuidar dele.”[1]
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O ventilador permite o desenho de um percurso alternativo e a suspensão temporária da normalidade fisiológica que sustenta todo o sistema respiratório. Este dispositivo externo responde à falência de uma parte do organismo e, num momento crítico, apresenta-se como substituto utilizável. Também o projecto Cuidados Intensivos nos apresenta o desenho de um ventilador, neste caso, conceptual. Um dispositivo radical que permita às artes performativas a construção de vias alternativas que atravessem as mais remotas geografias críticas, mesmo que para isso, o primeiro passo seja a suspensão parcial da relação fundadora entre o corpo e o tempo.
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Existe uma articulação estreita entre algumas das tecnologias de registo e gravação (fotografia, cinema e fonógrafo) e a fisiologia. O estudo intensivo do corpo, na procura dos seus limites e das regras sobre as quais assenta o seu funcionamento, permitiu avanços em áreas muito diversificadas nas quais se inclui a percepção. Compreender a forma como nos relacionamos com o Mundo é sinónimo de compreender como é que nos constituímos enquanto sujeitos. Não é pois de estranhar que para autores como Kittler[2], simular e expandir os mecanismos onde assenta a percepção tenha como consequência a problematização da noção de Humano. A forma como gravamos e aquilo que conseguimos gravar condiciona não só as nossas possibilidades de resistirmos ao tempo mas também os fundamentos sobre os quais assentamos a nossa cultura.
O cinema, tal como Jonathan Crary[3] refere, tem uma ligação directa com as experiências científicas que procuravam medir a nossa visão quando exposta a estímulos cada vez mais rápidos. Em vez da explicação tradicional que insere o cinema numa evolução linear da imagem em direcção ao movimento e ao realismo, Crary opta por desvelar esta esquecida ligação à fisiologia e ao corpo. A imprensa e a gravura já haviam tido um papel decisivo na alteração dos nossos registos e do funcionamento da nossa memória, individual e colectiva. No entanto, é o cinema e o fonógrafo que nos remetem de forma mais decisiva para o corpo. É no limite da percepção que se inicia o cinema, não antes. Neste sentido, o cinema não virtualiza o corpo, ele convoca o corpo e instala-se nos seus intervalos, transformando-o através de intensidades que variam entre a presença e a ausência de uma imagem.
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As artes performativas acolhem a irresolúvel tensão que mantêm com as tecnologias de registo e gravação. A dimensão efémera do seu operar e do corpo que as sustenta, não permite uma reprodutibilidade neutra. Neste caso, a tentativa de gravação/reprodução acarreta sempre uma alteração ontológica irreversível daquilo que se pretende guardar. Existe uma estranheza primordial que dificulta a transformação da performance em imagem, em registo, em arquivo ou, resumindo, em memória exterior ao sujeito. Nenhuma técnica parece ser capaz de conter a virtualidade de cada nova apresentação, mesmo quando esta parte da mesma matriz que a anterior. Descodificar a proveniência desta estranheza ou compreender com rigor os bases em que assenta, permitirá no futuro agenciar toda esta energia para a construção de dispositivos de apresentação mais fortes e expressivos.
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A temporalidade da performance esvai-se em memória em cada um dos sujeitos que a observam e desta forma prolonga-se numa rede viva de sensações pessoais. Esta maneira fluída e versátil de operar, de se dar a ver, reitera a sua irreprodutibilidade ao mesmo tempo que confirma a singularidade de cada recepção.
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Ao expor os livros que cada criador lê, ao construir e tornar públicos arquivos constituídos por fragmentos de processos criativos, objectos e partituras, estamos a criar um espelho para a performatividade da recepção. Continua a tratar-se de um trabalho da memória no seu diálogo com o tempo mas, em vez do momento após a performance, estamos ainda no espaço virtual que antecede a sua definição. Ao situarmos a nossa experiência nesse jogo prévio à criação, saltamos o passo da performance propriamente dita para nos focarmos mais na fenomenologia da leitura enquanto processo paralelo ao do próprio criador. Trata-se de uma justaposição de possibilidades porque colocamos lado a lado a plasticidade da criação e a imprevisibilidade da leitura, também ela assumida como um processo de co-autoria.
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Eu dou-te acesso ao meu mundo, a partir do qual crio objectos que passarão para ti ao abrigo de um programa de assimilação complexo instanciado de forma individualizada em cada sujeito. Ao fazê-lo, estou a partilhar a teia de tensões e de forças que movo através do meu trabalho e convido-te a escolher outras vias. Este processo ensaiado pelos Cuidados Intensivos é o oposto da rememoração técnica do acontecimento possibilitada pela fotografia ou pelo vídeo. O aspecto fragmentado dos arquivos expostos remete-nos para essa impossibilidade de construirmos um discurso fixável e partilhável. Também politicamente, este projecto expositivo, tal como a performance que se propõe pensar, relembra-nos que ainda existem esferas experimentais onde a construção pode ser suplantada pela imprevisibilidade. Onde as regras são substituídas por um jogo ideal Deleuziano e passam a ser geradas em cada momento, em cada sujeito. No limite, esta forma de reactivar estes objectos tem uma intensa dimensão política que se articula com a crise que atravessamos. O desaparecimento progressivo da diversidade cultural motivado pela escassez de recursos e por um entendimento redutor das suas múltiplas dinâmicas, pode (e deve), como aqui se vê, ser contrariado através de sucessivas reactivações de cartografias criativas abandonadas.
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Os diálogos entre as tecnologias de gravação e o corpo geram novos espaços para a memória e implicam o surgimentos de múltiplos espaços de arquivo. Estes espaços que oscilam entre a taxonomia e a ontologia. Numa primeira fase, por via da escrita, a memória exteriorizada fazia parte de um legado colectivo mesmo quando actualizado num determinada indivíduo. Depois, com a evolução desta geografia da memória, observamos um processo de individualização que permite ao sujeito sobreviver enquanto tal por via do registo das suas ideias. Num terceiro momento, o do cinema e do corpo-limite, a memória também se produz para lá do sujeito, provavelmente, não enquanto memória no seu sentido mais tradicional mas enquanto base de dados. Foi por via da informação e da velocidade computacional que o corpo-limite parece ter-se separado das tecnologias que o aparelhavam até então. Tecnologias essas que assumiram dimensões e frequências de operação não compatíveis com a percepção humana. Neste sentido, o cinema viu exacerbada a sua natureza enquanto registo de um conjunto de amostras do real e deu lugar a frequências de sampling cada vez maiores.
Nos dias de hoje, a memória cruzada com o arquivo celebra uma dimensão inumana da informação. O algoritmo de visão por computador que vigia a fronteira de um país é um bom exemplo desta transição do cinema para a automação da imagem e da recepção. A automação da visão, da memória e a construção de arquivos já não se faz a partir do corpo e em contacto ligeiro com ele mas objectivando esse mesmo corpo.
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Tal como referimos no início, existe uma tensão que se situa na base das artes performativas e que opõe a sua necessidade de desaparecimento como ignição da performatividade à fixação possibilitada pelas tecnologias de gravação/reprodução. Para que exista, a performance deve desaparecer, dar lugar a outro momento que produza um diálogo interno entre o que acabámos de ver e o que somos. Claro que podemos registar essa sucessão mas estaremos a produzir um objecto que é radicalmente diferente do ponto ontológico onde se funda a performance.
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Actualmente, a nossa percepção deambula por um palco de intensidades
magnéticas, o que torna este exercício de reactivação de objectos e de ideias exigente
e desconfortável. Os diversos regimes de participação e de interacção que a
arte tem experimentado, com mais frequência desde a 2ª metade do séc. XX,
competem com dificuldade com outras formas igualmente centradas na recepção mas
assentes em regimes mais passivos. É por isso que é cada vez mais necessário um
regime de Cuidados Intensivos que
tenha como objecto as intensidades que nos rodeiam e aquilo que elas
esperam/exigem de nós. No fundo, nada mais do que uma ecologia da recepção.
[1] Cruz, Maria Teresa (2001). Arte e experimentação. In A experiência do lugar. Porto: Porto 2001.
[2] Kittler, Friedrich (1997). Gramophone, Film, Typewriter. Califórnia: Stanford University Press.
[3] Crary, Jonathan (1992). Techniques of the observer. Massachusetts: The MIT Press.
Foto: Cuidados Intensivos, 2013©Margarida Ribeiro